sábado, 27 de novembro de 2010

Lisboa

«A saudade, dizia Maria do Carmo, não é uma palavra, é uma categoria do espírito, só os portugueses conseguem senti-la, porque têm esta palavra para dizer que a têm, disse-o um grande poeta. E então começava a falar de Fernando Pessoa. Ia buscá-la a casa dela na Rua das Chagas por volta das seis da tarde, ela ficava à minha espera atrás de uma janela, quando me via desembocar no Largo de Camões abria o pesado portão e descíamos em direcção ao cais deambulando pela Rua dos Fanqueiros e pela Rua dos Douradores, vamos seguir um itinerário fernandino, dizia ela, estes eram os lugares predilectos de Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa, semi-heterónimo por definição, era aqui que ele fazia a sua metafísica, nestas barbearias. Àquela hora a Baixa estava cheia de gente apressada e barulhenta, os escritórios das companhias de navegação e das firmas comerciais fechavam os guichets, nas paragens dos eléctricos havia bichas enormes, ouvia-se os gritos dos engraxadores e dos ardinas. Enfiávamos na confusão da Rua da Prata, atravessávamos a Rua da Madalena e descíamos em direcção ao Terreiro do Paço, branco e melancólico, onde os primeiros cacilheiros atulhados de gente largavam para a outra banda. Estamos já na Lisboa de Álvaro de Campos, dizia Maria do Carmo, em puocas ruas mudámos de heterónimo.
Àquela hora a luz de Lisboa era branca para os lados da barra e rosada sobre as colinas, os edifícios pombalinos pareciam uma oleografia e o Tejo era sulcado por uma miríade de barcos. Aproximávamo-nos do cais, o cais onde Álvaro de Campos ia esperar ninguém, como dizia Maria do Carmo, e recitava alguns versos da «Ode Marítima», aquela passagem em que o pequeno paquete desenha o seu perfil no horizonte e Campos sente um volante que começa a girar dentro de si. A noite ia caindo sobre a cidade, acendiam-se as primeiras luzes, também o Tejo se acendia com os reflexos, nos olhos de Maria do Carmo havia uma grande melancolia. Talvez sejas novo demais para perceberes, com a tua idade eu não teria percebido, não teria imaginado que a vida fosse como um jogo a que eu jogava na minha infância em Buenos Aires, Pessoa é um génio porque percebeu o reverso das coisas, do real e do imaginado, a poesia dele é um juego del revés.

Antonio Tabucchi, O Jogo do Reverso

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